O Grito Silencioso no Meio do Trovão: A Profunda Repercussão da Guerra para o Autista
- Fabio Stramar
- 23 de jun.
- 9 min de leitura

Sabe aquela sensação que aperta o peito quando vemos as notícias sobre guerras? As imagens de cidades destruídas, famílias correndo em busca de segurança... É um soco no estômago? Pelo menos é assim que sinto. A gente se pergunta como as pessoas conseguem sobreviver a tanto horror. Mas hoje, quero te convidar para uma reflexão que tive em relação ao autismo no momento que estava assistindo notícias sobre o conflito entre Israel e Irã.
Meu primeiro questionamento foi: “quais os números de pessoas com autismo em Israel e Irã?”
Os dados são extremamente imprecisos.
O segundo questionamento foi: “como os autistas vivem um momento de conflito tão intenso quanto esse?”
A repercussão da guerra para o autista é um capítulo doloroso e frequentemente negligenciado nas narrativas de conflitos armados. Enquanto o mundo acompanha os movimentos geopolíticos e as batalhas, existe uma luta interna, intensa e particular acontecendo no universo de cada indivíduo autista apanhado no meio do fogo cruzado. Para eles, a guerra não é apenas a perda da paz exterior; é a demolição do seu mundo interior, construído com tanto esforço sobre pilares de rotina, previsibilidade e um delicado equilíbrio sensorial.
Para quem não tem uma convivência próxima com o autismo, pode ser um desafio imaginar a dimensão desse impacto. Pessoas no espectro autista processam o mundo de uma maneira única. Estímulos que para nós podem ser apenas parte do ambiente – um som alto, uma luz forte, uma multidão – para eles podem ser avassaladores, quase uma agressão física. A previsibilidade não é um luxo, mas uma necessidade vital para a sua estabilidade emocional e cognitiva. Agora, tente transpor essa realidade para um cenário onde a única constante é o caos, o medo e a imprevisibilidade da guerra. É uma tempestade perfeita de angústia.
Decifrando o Impacto: Como a Guerra Desmonta o Mundo de uma Pessoa com Autismo
Vamos desdobrar essa realidade em pedaços menores, para que possamos sentir, nem que seja um pouquinho, o que se passa com uma pessoa autista quando seu lar vira um campo de batalha. Não se trata apenas de medo; trata-se de uma desintegração sensorial, emocional e cognitiva.
Bombardeio Sensorial: Quando o Mundo Grita Demais
Pense no seu sentido mais aguçado. Agora, imagine esse sentido sendo bombardeado sem trégua, 24 horas por dia. É algo próximo do que muitas pessoas com autismo vivenciam em tempos de paz com estímulos do dia a dia.
Isso acontece pela hiper ou hipersensibilidade, que é uma das características mais intensas que observamos no autismo. Quer dizer, os sentidos podem ser altamente reativos ou não. Na guerra, isso é elevado a uma potência inimaginável.
Sons que Ferem: O estrondo de uma bomba não é apenas um barulho alto. Para alguém com hipersensibilidade auditiva, comum no autismo, pode ser uma experiência de pura agonia. O som pode parecer penetrar o corpo, causando dor física, náusea, tontura. Sirenes de ataque aéreo, o matraquear de metralhadoras, os gritos de pânico – cada um desses sons é uma nova onda de tortura sensorial. O silêncio, quando ocorre, pode ser igualmente angustiante, carregado pela expectativa do próximo estrondo. Muitas crianças autistas tapam os ouvidos com força, balançam o corpo ou gritam na tentativa de bloquear ou modular essa invasão sonora.
Luzes que Cegam, Imagens que Assombram: Clarões de explosões rasgando a noite, o fogo consumindo edifícios, a visão constante de destruição e, por vezes, de feridos ou pior. Para quem tem sensibilidade visual, isso pode ser desorientador e aterrorizante. A dificuldade em filtrar estímulos visuais irrelevantes, comum no TEA, faz com que o cérebro seja inundado por informações caóticas, tornando quase impossível encontrar um ponto de foco ou calma.
O Caos do Toque e do Movimento: Em abrigos superlotados ou durante fugas desesperadas, o contato físico inesperado é inevitável. Para muitos autistas, ser tocado sem aviso ou estar espremido entre corpos estranhos pode gerar um pânico imenso, uma sensação de invasão e perda de controle sobre o próprio corpo. A necessidade de espaço pessoal, tão crucial, é brutalmente violada.
Cheiros e Texturas da Destruição: O cheiro de fumaça, poeira, e por vezes o odor metálico do sangue ou de produtos químicos, podem ser extremamente nauseantes e perturbadores para quem tem sensibilidade olfativa. A textura da sujeira, dos escombros, a falta de higiene nos abrigos improvisados, tudo isso contribui para um mal-estar constante.
Essa sobrecarga sensorial contínua não resulta apenas em desconforto. Ela pode levar a meltdowns (explosões emocionais intensas, como gritos, choro incontrolável, agressividade) ou shutdowns (um desligamento, onde a pessoa pode parecer catatônica, incapaz de responder ou se mover). São reações involuntárias a um sistema nervoso completamente sobrecarregado, tentando escapar desesperadamente de um ambiente intolerável.
O Chão que Desaparece: A Quebra da Rotina e da Previsibilidade
Se para a maioria das pessoas a rotina traz um certo conforto, para muitas pessoas com autismo, ela é a própria estrutura que sustenta seu mundo. É o que torna o ambiente compreensível e seguro.
E aqui temos um ponto de extrema importância, você gostando ou não, a rotina oferece uma previsibilidade para qualquer pessoa, para qualquer cérebro.
Agora voltando a nossa reflexão.
O Relógio Despedaçado: A guerra não respeita horários. Refeições, sono, terapias, momentos de lazer estruturado, a ida à escola ou ao centro de apoio – tudo o que antes marcava o ritmo do dia e da semana é varrido. Essa perda de estrutura pode gerar uma ansiedade paralisante, uma sensação de estar à deriva em um mar de incertezas. A pergunta "o que vai acontecer agora?" torna-se uma fonte constante de terror.
Objetos de Ancoragem Perdidos: Muitas pessoas com autismo têm objetos de apego ou interesses especiais que lhes proporcionam conforto, regulação e uma sensação de familiaridade. Pode ser um cobertor específico, um brinquedo, uma coleção de pedras, um livro. Na fuga apressada, esses "âncoras" emocionais são frequentemente deixadas para trás. A perda desses itens pode ser vivida como a perda de uma parte de si mesmo, intensificando o trauma e o desamparo.
Rituais Interrompidos: Comportamentos repetitivos e rituais podem servir como importantes mecanismos de autorregulação para pessoas com autismo. A impossibilidade de realizar esses rituais em um ambiente caótico e inseguro pode aumentar significativamente o estresse e a dificuldade de lidar com a situação.
A ausência de previsibilidade impede que a pessoa autista possa antecipar eventos e se preparar para eles, o que é uma estratégia fundamental de enfrentamento. Cada momento se torna uma potencial ameaça desconhecida.
O Labirinto da Comunicação em Meio ao Caos
A comunicação, já um desafio para muitos no espectro em situações normais, torna-se um campo minado em tempos de guerra.
Decifrando o Indecifrável: Ordens gritadas por soldados ou socorristas, instruções complexas dadas sob pressão, o uso de linguagem figurada, ironia ou sarcasmo (comuns em situações de estresse) podem ser completamente incompreensíveis para quem tem um processamento literal da linguagem. Eles podem não entender a urgência, ou podem interpretar mal uma instrução, colocando-se em perigo.
A Leitura das Emoções Alheias: A dificuldade em interpretar expressões faciais, tons de voz e outras pistas sociais não verbais pode fazer com que a pessoa autista não perceba o medo ou a gravidade da situação nos outros, ou que reaja de forma considerada "inapropriada" para o contexto, gerando incompreensão e, por vezes, hostilidade.
A Voz que Não Sai: Tão importante quanto entender é ser entendido. Em momentos de pânico e sobrecarga, muitos indivíduos autistas podem perder a capacidade de falar (mutismo seletivo situacional) ou ter extrema dificuldade em articular suas necessidades, medos ou dores. Podem precisar de mais tempo para processar uma pergunta e formular uma resposta, tempo este que raramente existe em emergências.
Comunicação Não Verbal como Barreira: Para aqueles que são não-verbais ou utilizam sistemas de comunicação alternativa (como pranchas de comunicação ou tablets), a guerra representa um obstáculo gigantesco. Esses sistemas podem ser perdidos, danificados ou simplesmente impossíveis de usar em abrigos escuros e lotados ou durante a fuga.
Essa falha na comunicação bidirecional aumenta a vulnerabilidade, o isolamento e o risco de não receberem a ajuda de que necessitam desesperadamente.
A Escalada da Ansiedade e o Peso do Trauma
A ansiedade é uma companheira frequente de muitas pessoas com autismo, mesmo em ambientes estáveis. A guerra atua como um catalisador brutal, elevando essa ansiedade a níveis insuportáveis e semeando traumas profundos.
Medo Constante e Hipervigilância: Ameaças reais e constantes – bombardeios, tiros, a presença de soldados – criam um estado de alerta permanente. O corpo e a mente ficam em constante modo de "luta ou fuga", o que é exaustivo e prejudicial a longo prazo.
Regressão de Habilidades: O estresse extremo pode levar à perda de habilidades previamente adquiridas, como a capacidade de autocuidado, comunicação ou interação social. É como se o cérebro, sobrecarregado, desligasse funções "não essenciais" para focar na sobrevivência imediata.
Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT): A exposição direta a eventos de guerra é um fator de risco primário para TEPT. Em pessoas com autismo, os sintomas do TEPT podem se manifestar de formas atípicas, como um aumento drástico em comportamentos repetitivos, isolamento social extremo, ou intensificação de interesses restritos como forma de fuga da realidade. Isso pode dificultar o diagnóstico e o tratamento adequado.
O Trauma da Perda e da Separação: Perder a casa, os pertences, a escola, os amigos e, o mais devastador, membros da família ou cuidadores, gera um trauma profundo. Para uma pessoa autista, que pode ter laços intensos e específicos, essas perdas podem ser particularmente desorganizadoras. O medo da separação dos cuidadores principais é uma fonte constante de terror.
Agora imagine que essa ansiedade esta pairando sobre todo ambiente, nas pessoas que são seu “porto seguro” e que deveriam estar lhe ajudando a lidar com essa ansiedade?
O Deserto de Suportes: Quando a Rede de Segurança Desaba
Os sistemas de apoio que são vitais para o desenvolvimento e bem-estar de pessoas com autismo são frequentemente as primeiras baixas em um conflito.
Interrupção de Terapias: Terapias comportamentais (como ABA), TEACCH, fonoaudiologia, terapia ocupacional, acompanhamento psicológico – todos esses suportes cruciais são interrompidos. Isso não é apenas a perda de um serviço; é a remoção de ferramentas essenciais que ajudam a pessoa a navegar no mundo, a se comunicar, a regular suas emoções e a aprender. Além de um rompimento da rotina.
Falta de Medicamentos: Muitos indivíduos com autismo também podem ter condições coexistentes, como epilepsia, TDAH ou transtornos de ansiedade, que requerem medicação contínua. A guerra interrompe as cadeias de suprimentos, tornando o acesso a esses medicamentos difícil ou impossível, com consequências graves para a saúde física e mental.
Escolas e Centros de Apoio Fechados: Escolas especiais ou programas de inclusão que oferecem um ambiente estruturado e adaptado desaparecem. Isso significa não apenas a perda da educação, mas também a perda de um espaço seguro, de interações sociais com apoio e de rotinas importantes.
Cuidadores Sob Estresse Extremo: Os pais, familiares e cuidadores de pessoas com autismo já carregam uma carga pesada em tempos normais. Na guerra, eles enfrentam o desafio monumental de proteger seus entes queridos em condições extremas, muitas vezes sem qualquer apoio, enquanto lidam com seus próprios medos e traumas. O esgotamento físico e emocional dos cuidadores é um fator crítico que impacta diretamente o bem-estar da pessoa autista.
Tecendo uma Rede de Esperança e Ação: O Que Podemos Fazer?
Diante de um quadro tão sombrio, é fácil sentir-se impotente. Mas a verdade é que cada gesto de conscientização, cada ação de apoio, por menor que pareça, pode ajudar a tecer uma rede de esperança.
O primeiro passo é a informação. Compartilhar artigos, discutir o tema com amigos e familiares, e dar visibilidade às histórias de pessoas autistas e suas famílias em zonas de conflito ajuda a quebrar o silêncio. Quanto mais pessoas entenderem a urgência e a especificidade dessas necessidades, maior a pressão por respostas adequadas.
Outro ponto a se pensar seria a inclusão em situações de emergência das necessidades de pessoas com autismo (e outras deficiências e neurodiversidades).
Que isso realmente esteja no planejamento e execução de todas as respostas a emergências.
Pensei em algumas ideias:
Abrigos acessíveis e sensoriais: Criar, sempre que possível, espaços mais calmos, com menos estímulos, dentro de abrigos maiores, ou fornecer tendas familiares.
Comunicação clara e adaptada: Utilizar linguagem simples, recursos visuais (pictogramas), e ter intérpretes ou facilitadores que possam ajudar na comunicação.
Treinamento para socorristas: Capacitar equipes de resgate e voluntários para identificar e interagir de forma adequada com pessoas autistas.
Priorização em evacuações: Reconhecer que pessoas com autismo podem precisar de mais tempo e suporte durante evacuações.
Apoio psicossocial especializado: Oferecer suporte para trauma que seja sensível às particularidades do autismo.
Os cuidadores são heróis anônimos nessa luta. Eles precisam de apoio, respiro e recursos para poderem continuar a cuidar. Programas que ofereçam suporte psicossocial e prático para cuidadores são essenciais.
Outro ponto importante é pensar no pós guerra.
O conflito acaba, mas o que vamos fazer com as cicatrizes?
O apoio a pessoas autistas e suas famílias precisa continuar na fase de reconstrução, com foco na retomada de terapias, educação inclusiva e na criação de comunidades mais resilientes e preparadas.
E isso tudo só vai ser possível se realmente tivermos empatia ativa. É genuinamente, se colocar no lugar do outro. Imaginar o mundo através dos seus sentidos, das suas dificuldades. Essa empatia pode não mudar o mundo da noite para o dia, mas transforma a nossa perspectiva e nos impulsiona a agir.
E essa capacidade empática, ou você já nasce com essa disponibilidade ou você adquire através do conhecimento advindo do estudo.
A jornada de uma pessoa com autismo em um mundo "normal" já é cheia de desafios. A guerra transforma esses desafios em montanhas quase intransponíveis. Mas não podemos permitir que seus gritos, mesmo que silenciosos para muitos, se percam no barulho das bombas. Eles precisam da nossa voz, da nossa ação e, acima de tudo, da nossa humanidade. Que possamos ser a calmaria em meio à tempestade, o farol que guia para um porto um pouco mais seguro.
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